Onde viviamos, do jeito que viviamos, era incomum criarem-se medos.
Eu andava de fato destemido e por isto me dei muito mal. Xinguei de fedaputa um colega de Grupo que já tinha cara, porte e atitudes de homem. Imprudência: um direto no queixo, partido do imenso rapaz indignado e julgando-se cheio de razão ao defender a honra de sua mãe, surpreendeu-me. Acabou com aquele atrevimento todo, jogando-me assustado e ferido ao chão.
Um medinho, uma brincadeira adotada por quase todos, acontecia de tempos em tempos e era folclórico: o medo da Arminda Doida. Mulher fortíssima que invadia Ferros a cada verão, assustava meninos e moças avessos à emoções fortes. Morena, alta e musculosa, observadora e crítica, tinha a boca expressiva e olhos inquizidores. Era vistosa, mas suja e sem escrúpulo algum. Parecendo até gente sensata, era capaz de manter por um minuto uma conversa coerente. Para o espanto de seus chocados interlocutores, em seguida, sem levantar a saia, urinava e defecava em pé, com a maior naturalidade.
Dizia-se que dela poderias fugir, desde que ela não te percebesse. Se ela te visse, te requisitasse, te abraçasse, te beijasse ou te xingasse, haverias de, ainda que tuas pernas tremessem, ou sentisses muito nojo, fingir calma, tranquilidade, bom humor, satisfação absoluta. Tudo isto com toda paciência. Do contrário, meu velho, ela te esmagaria, te mataria, com seus formidáveis braços e mãos.
Mas, histórias de assombração se ouvíamos, não dávamos importância. Desafios, quais fossem, eram para ser enfrentados e vencidos. Aranhas, escorpiões, cobras, lagartos e tantos outros bichos, se existiam, tratávamos de ignorá-los. Realmente, eu não acreditava nem em jacaré! Para mim, jacaré era como fantasma: não existia e pronto. Morrer afogado no rio Santo Antonio era azar daquelas infelizes crianças que não sabiam nadar. Porque nadávamos nós, moleques invencíveis, muito bem. Brigas de rua, devíamos fazer de tudo para evitar. Apesar do praguejar constante dos padres, não tinha essa história de medo de ir para o inferno com os nossos pecados. Para isto, tínhamos que evitar tudo o que nos parecesse moralmente errado.
Não é que nesse estado de espírito, passou-me pela cabeça que era aflitivo não ver e, na primeira noite que faltou luz na cidade, pude comprovar o quanto era. Assim foi que desenvolvi uma espécie de neurose. Neurose do escuro. Não medo de ser atacado por alguém ou algo que fosse, mas simplesmente horror de não enxergar. Qualquer coisa que pudesse distinguir, uma sombra, uma tremulante luz de vela, um vaga-lume, seriam suficientes para deixar-me tranqüilo. Aflitivo só, era nada ver.
Sem revelar a ninguém o meu problema, vinha-me a cada oportunidade de viajar, esta questão limitante: e se eu ficar em um lugar escuro?
Moravam tia Vera, tio Diniz e primos em um apartamento, no Edifício San Remo, em Belo Horizonte. Num fim de ano viajei para lá e hospedei-me com eles. Uma pequena árvore de natal fora colocada na sala. Luzes e bolas, como eu nunca tinha visto, ornamentavam-na. O quarto que reservaram para mim não tinha nenhuma lâmpada, mas o reflexo da árvore de natal iluminada dava-me o conforto e tranquilidade noturnos de que tanto precisava. Preparamo-nos para dormir. Algo muito sério aconteceu: um intromedido foi à árvore e a desligou. Fiquei aos sobressaltos. Neurose é assim. Um nada pode provocar pânico. A esperança que me restava naquela situação, nascera de alguma esperteza e certa criatividade. Pude segurar-me ante aquele pânico latente que ia tomando conta de mim.
Acontece que no meu quarto havia um rádio que se acendia e iluminava o seu grande dial. Devagarzinho, liguei-o. Tio Diniz, que ainda não adormecera, veio e desligou o meu rádio. Esperei, ardilosa, paciente e corajosamente que ele adormecesse. Ao ouvir os primeiros roncos daquele tio incompreensível levantei-me, pé por pé, para ligá-lo. O desgraçado do rádio começou a pipocar, a estourar, toda vez que o elevador do prédio subia ou descia. E lá vinha meu tio praguejando, não sei se contra um rádio automático ou contra um moleque a sacaneá-lo. Desligou-o. – O que é que eu faço? – Vou esperar. Ele, de uma hora para outra, acabará dormindo e aí eu fico com este rádio de maravilhosas luzes brancas.
A cena se repetiu outras vezes. Quando o Diniz se levantava para desligar o aparelho, era a impaciência e raiva a protestar contra a quebra do silêncio, a perda da repousante obscuridade, a interrupção do sono. Se foi angustiante me ver ameaçado definitivamente pela escuridão, e se foi desagradável sentir meu tio desprovido de qualquer senso de admiração pelo seu hóspede, tudo isto tornou-se também, definitivamente engraçado.
Não sei quem venceu esta briga. Quem dormiu primeiro. Só sei que a partir dessa noite nunca mais senti medo do escuro.
Eu andava de fato destemido e por isto me dei muito mal. Xinguei de fedaputa um colega de Grupo que já tinha cara, porte e atitudes de homem. Imprudência: um direto no queixo, partido do imenso rapaz indignado e julgando-se cheio de razão ao defender a honra de sua mãe, surpreendeu-me. Acabou com aquele atrevimento todo, jogando-me assustado e ferido ao chão.
Um medinho, uma brincadeira adotada por quase todos, acontecia de tempos em tempos e era folclórico: o medo da Arminda Doida. Mulher fortíssima que invadia Ferros a cada verão, assustava meninos e moças avessos à emoções fortes. Morena, alta e musculosa, observadora e crítica, tinha a boca expressiva e olhos inquizidores. Era vistosa, mas suja e sem escrúpulo algum. Parecendo até gente sensata, era capaz de manter por um minuto uma conversa coerente. Para o espanto de seus chocados interlocutores, em seguida, sem levantar a saia, urinava e defecava em pé, com a maior naturalidade.
Dizia-se que dela poderias fugir, desde que ela não te percebesse. Se ela te visse, te requisitasse, te abraçasse, te beijasse ou te xingasse, haverias de, ainda que tuas pernas tremessem, ou sentisses muito nojo, fingir calma, tranquilidade, bom humor, satisfação absoluta. Tudo isto com toda paciência. Do contrário, meu velho, ela te esmagaria, te mataria, com seus formidáveis braços e mãos.
Mas, histórias de assombração se ouvíamos, não dávamos importância. Desafios, quais fossem, eram para ser enfrentados e vencidos. Aranhas, escorpiões, cobras, lagartos e tantos outros bichos, se existiam, tratávamos de ignorá-los. Realmente, eu não acreditava nem em jacaré! Para mim, jacaré era como fantasma: não existia e pronto. Morrer afogado no rio Santo Antonio era azar daquelas infelizes crianças que não sabiam nadar. Porque nadávamos nós, moleques invencíveis, muito bem. Brigas de rua, devíamos fazer de tudo para evitar. Apesar do praguejar constante dos padres, não tinha essa história de medo de ir para o inferno com os nossos pecados. Para isto, tínhamos que evitar tudo o que nos parecesse moralmente errado.
Não é que nesse estado de espírito, passou-me pela cabeça que era aflitivo não ver e, na primeira noite que faltou luz na cidade, pude comprovar o quanto era. Assim foi que desenvolvi uma espécie de neurose. Neurose do escuro. Não medo de ser atacado por alguém ou algo que fosse, mas simplesmente horror de não enxergar. Qualquer coisa que pudesse distinguir, uma sombra, uma tremulante luz de vela, um vaga-lume, seriam suficientes para deixar-me tranqüilo. Aflitivo só, era nada ver.
Sem revelar a ninguém o meu problema, vinha-me a cada oportunidade de viajar, esta questão limitante: e se eu ficar em um lugar escuro?
Moravam tia Vera, tio Diniz e primos em um apartamento, no Edifício San Remo, em Belo Horizonte. Num fim de ano viajei para lá e hospedei-me com eles. Uma pequena árvore de natal fora colocada na sala. Luzes e bolas, como eu nunca tinha visto, ornamentavam-na. O quarto que reservaram para mim não tinha nenhuma lâmpada, mas o reflexo da árvore de natal iluminada dava-me o conforto e tranquilidade noturnos de que tanto precisava. Preparamo-nos para dormir. Algo muito sério aconteceu: um intromedido foi à árvore e a desligou. Fiquei aos sobressaltos. Neurose é assim. Um nada pode provocar pânico. A esperança que me restava naquela situação, nascera de alguma esperteza e certa criatividade. Pude segurar-me ante aquele pânico latente que ia tomando conta de mim.
Acontece que no meu quarto havia um rádio que se acendia e iluminava o seu grande dial. Devagarzinho, liguei-o. Tio Diniz, que ainda não adormecera, veio e desligou o meu rádio. Esperei, ardilosa, paciente e corajosamente que ele adormecesse. Ao ouvir os primeiros roncos daquele tio incompreensível levantei-me, pé por pé, para ligá-lo. O desgraçado do rádio começou a pipocar, a estourar, toda vez que o elevador do prédio subia ou descia. E lá vinha meu tio praguejando, não sei se contra um rádio automático ou contra um moleque a sacaneá-lo. Desligou-o. – O que é que eu faço? – Vou esperar. Ele, de uma hora para outra, acabará dormindo e aí eu fico com este rádio de maravilhosas luzes brancas.
A cena se repetiu outras vezes. Quando o Diniz se levantava para desligar o aparelho, era a impaciência e raiva a protestar contra a quebra do silêncio, a perda da repousante obscuridade, a interrupção do sono. Se foi angustiante me ver ameaçado definitivamente pela escuridão, e se foi desagradável sentir meu tio desprovido de qualquer senso de admiração pelo seu hóspede, tudo isto tornou-se também, definitivamente engraçado.
Não sei quem venceu esta briga. Quem dormiu primeiro. Só sei que a partir dessa noite nunca mais senti medo do escuro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário