sábado, 1 de janeiro de 2011

Medo do Escuro

      Onde viviamos,   do jeito que   viviamos, era incomum criarem-se medos.
    Eu andava de fato destemido e   por isto me dei muito mal.  Xinguei de fedaputa um colega de Grupo que já tinha cara,   porte e atitudes de homem. Imprudência:  um direto no queixo, partido do imenso rapaz indignado e julgando-se cheio de razão ao defender a honra de sua mãe, surpreendeu-me. Acabou com aquele atrevimento todo, jogando-me  assustado e ferido ao chão.
   Um medinho,  uma brincadeira  adotada por quase todos,  acontecia de tempos em tempos e era folclórico: o medo da   Arminda Doida. Mulher  fortíssima que invadia Ferros a cada verão, assustava   meninos e moças avessos à emoções fortes. Morena, alta e musculosa, observadora e crítica, tinha a boca expressiva e olhos inquizidores. Era   vistosa, mas  suja e sem escrúpulo algum. Parecendo até gente sensata, era capaz de manter por um minuto uma conversa  coerente. Para o espanto de seus chocados interlocutores, em seguida, sem levantar a saia,   urinava e defecava em pé, com a maior  naturalidade.
     Dizia-se que dela poderias fugir,  desde que ela não te percebesse. Se ela te visse, te requisitasse, te abraçasse, te  beijasse ou te xingasse, haverias de, ainda que tuas pernas tremessem, ou sentisses muito nojo, fingir  calma, tranquilidade, bom humor, satisfação absoluta. Tudo isto com toda  paciência. Do contrário, meu velho,  ela te esmagaria, te mataria, com seus formidáveis braços e mãos.
    Mas, histórias de assombração se ouvíamos, não dávamos importância. Desafios, quais fossem, eram para ser enfrentados e vencidos. Aranhas, escorpiões, cobras, lagartos e tantos outros bichos, se existiam, tratávamos de ignorá-los. Realmente, eu não acreditava  nem em jacaré! Para mim, jacaré era como fantasma: não existia e pronto. Morrer afogado no rio Santo Antonio era azar daquelas infelizes crianças que não sabiam nadar. Porque nadávamos nós, moleques invencíveis, muito bem. Brigas de rua, devíamos fazer de tudo para evitar. Apesar do praguejar constante  dos padres, não tinha essa história de  medo de ir para o inferno com os nossos pecados. Para isto, tínhamos que evitar tudo o que  nos parecesse moralmente errado.
        Não é que nesse estado de espírito, passou-me pela cabeça que era aflitivo não ver e, na primeira noite que faltou luz na cidade, pude comprovar o quanto era. Assim foi que desenvolvi uma espécie de neurose. Neurose  do escuro. Não medo de ser atacado por alguém ou algo que fosse, mas simplesmente horror de não enxergar. Qualquer coisa que pudesse distinguir, uma sombra, uma tremulante luz de vela, um vaga-lume, seriam suficientes para deixar-me tranqüilo. Aflitivo só, era nada ver.
     Sem revelar a ninguém o meu problema, vinha-me a cada oportunidade de viajar, esta questão limitante: e se eu ficar em um lugar escuro?
      Moravam tia Vera, tio Diniz e primos em um apartamento, no Edifício San Remo, em Belo Horizonte. Num fim de ano viajei para lá e hospedei-me com eles. Uma pequena árvore de natal fora colocada na sala. Luzes e  bolas, como eu nunca tinha visto, ornamentavam-na. O quarto que reservaram para mim não tinha nenhuma lâmpada, mas o reflexo da árvore de natal iluminada dava-me o conforto e tranquilidade noturnos de que tanto precisava. Preparamo-nos para dormir. Algo muito sério aconteceu: um intromedido foi à árvore e a desligou. Fiquei aos sobressaltos. Neurose é assim. Um nada pode provocar pânico. A esperança que me restava naquela situação, nascera de alguma esperteza e certa criatividade.  Pude segurar-me ante aquele  pânico latente que ia  tomando conta de mim.
      Acontece que  no meu quarto havia um rádio  que se acendia e iluminava o seu grande dial. Devagarzinho, liguei-o. Tio Diniz, que ainda não adormecera, veio e desligou o meu rádio. Esperei, ardilosa, paciente e corajosamente que ele adormecesse. Ao ouvir os primeiros roncos daquele tio incompreensível levantei-me, pé por pé, para ligá-lo. O desgraçado do rádio começou a pipocar, a estourar, toda vez que o elevador do prédio subia ou descia. E lá  vinha meu tio praguejando, não sei se contra um rádio automático ou contra um moleque a sacaneá-lo. Desligou-o. – O que é que eu faço? – Vou esperar. Ele,  de uma hora para outra, acabará dormindo e aí eu fico com este rádio de maravilhosas luzes brancas.
      A cena se repetiu outras vezes. Quando o Diniz se levantava  para desligar o aparelho,   era   a   impaciência e raiva a protestar contra a quebra do silêncio, a perda da repousante obscuridade, a interrupção do sono. Se foi angustiante me ver  ameaçado definitivamente pela escuridão, e se foi   desagradável sentir  meu tio desprovido de qualquer senso de admiração pelo seu hóspede, tudo isto tornou-se também, definitivamente engraçado.
       Não sei quem venceu esta briga. Quem dormiu primeiro. Só sei que a partir dessa noite nunca mais senti medo do escuro.








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