segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Máquina do Tempo


               


    MÁQUINA DO TEMPO



             Ouço seu apito desafiador e
             Deixo-me levar viajando décadas.

             Respirando fogo, respingando água,
             Suspirando fumaça.
             Anacrônica máquina!


             Seu balanço embala minh’alma.
             Seu compasso me descompassa:

             Espaço e tempo me confundem,
             Num sonho visionário,
             De também desafiar meu tempo:

             Como a insensata Maria Fumaça,
         Tresloucada rompendo  séculos.



                                  Matta Machado, Estrada de Ferro Oeste de Minas
                                                                                                      1999

sábado, 26 de novembro de 2011

Carros


          Os carros são antes de tudo um símbolo da liberdade,  da motilidade, da autonomia, da independência


         Tive,  aos três anos de idade, minha primeira experiência ao volante. Paparicado pela tia Laura, em seu colo girava com as duas mãos o botão de seu "peignoir", como se fora o volante de um carro. 
        Tia Laura, com seu rosto moreno claro e redondo, seus volumosos cabelos pretos anelados  e  seu  sorriso arrebatador, não era minha tia de verdade. Mas apaixonou-se pelo seu pequeno inquilino. Com o tio Mário e filhos possuía uma ampla casa branca de dois andares com uma varanda, situada na Av Bernardo Monteiro 124 em Belo Horizonte. A meu pai, estudante de direito, eles alugaram seu barracão de fundos. Lá ele residiu com Stella, minha mãe, Sérgio, Rosa e eu. Assistiríamos à sua festa de formatura algum tempo depois. Naquele dia o Sérgio causou uma risada geral quando gritou a plenos pulmões: ah pai, agora você vai ficar barbudo!!!. Voltaríamos para Ferros. Papai tornar-se-ia um dos maiores advogados criminalista do centro e norte de Minas.
     Enquanto isto eu continuava a fazer de qualquer coisa que se movesse um carro, e de  qualquer suporte, estradas. As primeiras rugas na testa de meu pai foram ótimas pistas para meus carros-dedos. Como se todos soubessem dos meus desejos, eram carrinhos e mais carrinhos que sempre ganhava de presente. E eu os cedia à meninada da rua para que, em fila, cada um conduzisse o seu por estradinhas de terra que cuidadosamente  fazíamos, às vezes escavando uns barrancos macios no terreiro.


   Mas agora, dentre as máquinas fascinantes  podia eleger a minha  preferida: um estupendo Ford 29 comprado pelo papai. Que foi uma alegria para ele via-se em sua expressão. Uma glória para o vendedor, também estava na cara: maravilhado dizia - vejam o que eu ganhei! - enquanto balançava o pacote de notas que meu pai lhe entregou como pagamento daquele, afinal de contas, velho carro preto. Com dó do dinheiro gasto, como se ele também fora meu, e sofrêssemos prejuízo, imediatamente não gostei daquele sujeito.
 O grande negócio aconteceu na Fazenda do Borba ou Fazenda do Serrinha, simpático e querido amigo do meu pai, a quem visitávamos regularmente. À frente da casa, do outro lado da estrada, subindo-se dois degraus de pedra,  longos e altos, chegava-se à Venda do Nonô do  Serrinha. Sentia-me importante quando podia   livremente circular por dentro da loja, por traz do balcão, entre as escuras filas de prateleiras que tinham tecido, vasilhas, velas,  lampiões e incontáveis outras utilidades. Seguia direitinho para onde estavam depositados os Tracs, esses fósforos explosivos, que sem cerimonia pegava algumas caixas na conta de meu pai. Conta que provavelmente ele nunca acertava, imagino agora. Como bom mineiro, o Serrinha recebia-nos na cozinha de sua casa. Cozinha aonde, depois do jantar seus filhos gordos fritavam queijos para servirem-se com café. A sala de jantar, próxima e ligeiramente acima era ocupada pela Dona Zina. Aparentava sessenta anos e tinha os cabelos pintados pretos. Ao contrário de seu sanguíneo marido, era branca e pálida. Assentada sozinha e de frente, permanecia calada, imóvel, atenta. Enquanto durava a nossa visita os seus olhinhos negros, escondidos em sua face baça, inquiridores e misteriosos nos observavam. Afável, de sorriso constante, expressão curiosa e inteligente, o Serrinha era definitivamente uma pessoa muito simpática. Gostava de camisas coloridas, de mangas compridas. Usava  óculos de lentes verdes e grossas. Elas aumentavam os seus olhos e refletiam a fraca luz ambiente, enquanto ele contava casos ou ouvia-os  de meu pai. De vez em quando  apontava-me duas enormes tulhas depositadas no chão da cozinha, cada qual com um tipo de feijão, para repetir que os misturava para obrigar os meninos que faziam arte ou teimosia a separá-los. 
      Pois aquele alegre Serrinha, agora grave e sério me fala: "Manoel, você que é  sensato, ouça: seu pai não sabe dirigir, mas quer levar esse carro  para Ferros! Nós lhe dissemos para não fazer isto. Ele insiste... Então ponderamos: que vá sozinho, sem você. Então responda: fica ou vai com o seu pai?" Senti no fundo da alma que a situação era mesmo séria e que uma decisão seria difícil. Tomei coragem, disse firme, muito mais com o coração do que com a razão: vou com o papai! A súbita resposta foi engraçada para o Serrinha e seus rapazes - lembro-me ainda do riso gostoso deles; gloriosa para o meu pai, que se iluminou, deu um grito de vitória e também riu feliz. Angustiante para mim que bem novo já possuía senso de responsabilidade, de perigo e estava realmente assustado com a perspetiva daquela imprudente viagem.
Uma surpresa agradável me tirou o coração da mão: soube que tinham conseguido um motorista para guiar até Ferros: o Zanetti, de quem eu já conhecia algumas particularidades: mecânico de jeeps, tratores e caminhões, falava com sotaque, tinha olhos azuis,  pele vermelha enrugada,  bigode ruivo, boca grande e feia de onde brotavam risos irônicos. Italiano temperamental, falava com desdém de quem ousava dizer-se mecânico: o João do Serapião. Filho do marceneiro Serapião, preferiu malhar ferro, fazer trincos para porteiras e consertar carroças, a trabalhar com madeira. Tornou-se ferreiro, e também, conforme dizia, bombeiro hidráulico. Ao seu pai, Serapião marceneiro, encomendou-se um móvel alto, com muitas gavetas onde papai guardaria seus papéis e processos  judiciais. Esse móvel acabou tendo outra finalidade. Minha mãe o destinou, mais do que a guarda roupa, em guarda tudo. E mais do que em guarda tudo, transformar-se-ia aquele móvel alto e diferente, em curinga no jogo de desafios infantis. Foi assim: quando socorríamos à mamãe, em busca de alguma coisa, já se sabia que essa coisa podia estar guardada também lá. Para aonde mesmo era toda aquela demanda? E Dona Stella deu-lhe um ótimo nome: Serapião. Rosinha, diante de uma menina metida, que contava como vantagens um tanto de objetos e utilitários que em sua casa havia, e em nossa não, saiu-se com esta irrefutável comparação: minha casa tem Serapião, a sua não tem! 
      Apenas um quebra galho em sua bagunçada oficina que ficava à entrada de sua modesta casa na Rua da Cachoeira, João Serapião um dia arranjou uma solda elétrica. Passou a soldar quadros e eixos das poucas e surradas bicicletas da cidade. Quando alguém levava um problema mais difícil à sua oficina, esse infeliz candidato à freguês tinha que ver no rosto magro, feio e desesperado daquele artífice, uma careta a dizer-lhe: isto não tem conserto não! 
      Crítico e  implicante o Zanetti dizia do ferreiro e soldador de bicicletas: Jom Sarapion veste macacom, entra debaixo de um Jeep, prá mexê sabe-se lá com que. Quando sai, todo sujo de óleo diz que é mecânicoo! Ro Roh!
  
      Com o italiano Zanetti ao volante entrei feliz e sossegado no nosso carro. Ouvia o tac-tac do motor e sentia o seu saltitar macio e constante. Os faróis iluminavam  um pouquinho só o barro claro da estrada e suas margens. Quando um Jeep cruzou o nosso caminho, o Zanetti disse quem era. Intrigou-me - eu fazia essas contas - como ele soube se mal se podia ver o Jeep? De repente um susto: numa reta o carro começou a balançar forte e rápido para um lado e para o outro. Surpreendeu-me como o Zanetti controlou fácil o que me parecia uma  ameaça de morte. Tranqüilo e entendido, ele disse "chimbre". O resto da viagem foi ótima.
      Ao chegar não entrei logo em casa; fui dormir bem mais tarde do que de costume porque fiquei a reparar direito aquela novidade. Rodas grandes e raiadas, pneus estreitos. Quatro portas, cinco lugares, capota de lona preta. Pelas janelas da frente viam-se quebra ventos de vidros bordados. Para-lamas que continuavam por belas curvas os largos estribos. Arrogantes faróis presos por uma barra à frente do radiador prateado lembravam os óculos da vovó. Roda sobressalente presa atrás, debaixo de uma janelinha retrovisora.
      O bonito Fordinho dos meus cinco anos tornou-se mania minha e orgulho do papai. Passava horas assentado em sua boleia, brincando de dirigir, fantasiando viagens e aventuras, deliciando-me com o seu pequenino painel, cujo odômetro podia ser zerado (quando meu pai ensinou-me esta brincadeira ouvi a advertência de um seu amigo que o pegou em flagrante: Matta, você ensina e depois reclama que o Manoel mexe em tudo...). O volante era duro de virar, e os seus pedais alcançáveis desde que eu deitasse no banco de pernas espichadas. 
       Se já gostava de seguir meu pai, imaginem agora que ele se tornara  motorista do nosso carro... Virei o seu inseparável companheiro!
     Está carregando, dizia meu pai quando, com o motor funcionando, parávamos numa estrada à noite. Ele olhava através das venezianas do capô querendo ver a luz verde-azulada emitida pelo dínamo. Para saber assim se teríamos energia elétrica, que alimentasse os faróis e o motor.
Numa viagem, carro lotado, meu pai  demonstrava a facilidade com que se venciam as íngremes serras do Mendonça, enquanto  discorria também sobre como o seu carro era hábil para passar atoleiros. Seus passageiros soltaram uma provocação: tá bom Matta esse Ford é ótimo, mas não tem freio! Então para demonstrar outra qualidade daquele seu estimado automóvel, papai esperou que a velocidade aumentasse numa leve descida e freou forte.  Para mim que acompanhava atentamente a conversa, e já sentia como ofensa aquele desdém à nossa propriedade, foi mais do que um susto, uma engraçada, brusca e vitoriosa surpresa: todos batendo à frente e meu pai sorrindo podendo finalizar: freio a óleo! 
     No Fordinho tive diversão e corri perigos. Como a daquela vez em que observava meu pai saindo (eu estava sempre por perto). Num momento o seu carro avançou em minha direção. Papai assustado prestes a atropelar-me, não conseguia parar o carro. Contou depois que o acelerador de mão estava preso. Ford bigode! De outra vez, de pé no estribo, segurando-me à porta, enquanto o carro se movimentava cada vez mais depressa, tentei chamar a atenção de meu pai que ia no banco do carona. Toquei em seu braço, enquanto um amigo seu fazia a experiência de correr muito. Vi que não entenderam nada. Fiquei assim dependurado do lado de fora daquele carro chutado.  Indiquei novamente a meu pai tocando outra vez em seu braço que estava ali no estribo em situação de perigo.  Ele ao invés de mandar parar o diabo do carro, não entendeu o perigo e me beliscou. Eu é que agora não entendi mais nada e não caí e bati a cabeça por sorte!  
     Um dia corri pela rua à frente de um monstro que me perseguia. Gritando como louco, entrei na primeira porta de uma casa, que era por acaso a minha. Para desespero de minha mãe, parecia-lhe, de fato, que eu estava ficando doido. Doido como aqueles que regularmente aconteciam em Ferros.
    Quanto tempo passou, depois da doida hora do monstro, não sei. Quando me voltou a limpo a consciência, vi-me no meu quarto, em minha cama. Lá estava, a meu lado, o elegante, divertido e simpático médico da cidade, Dr. Júlio Drummond, todo de terno branco, como sempre.  Ao meu lado também meu pai, minha mãe e minha avó Dindinha. Percebia um alívio, uma alegria no ar... Estranhamente não me repreenderam.  Eu me sentia culpado.
     Soube então que o grande medo de todos de que eu tivesse endoidado, fora diluído pelo intenso cheiro de gasolina no quarto e a cândida explicação por todo aquele espetáculo: cheirara a gasolina do Fordinho. Saí de dentro do carro e fui, um dia, cheirar gasolina lá fora. Era só abrir a tampa rosqueada do tanque que ficava à frente do para-brisa.  Subia no estribo e começava a cheirar. Não sei durante quantos dias consegui impunemente praticar aquilo. Da última vez, tive tempo para exagerar. A cada inspiração forte, uma mistura de prazer e tontura confundia o meu espírito.
Gritou-me a Dindinha, que chegava para visitar-nos. Mal consegui descer, avisando que iria em seguida. O último pensamento prudente e lógico: – estou ficando tonto. Tenho que parar com isto. Só vou dar mais três cheiradas. – Consegui contar: uma, duas... E fui invadido por uma extrema e terrível sensação de ruindade de pavor, de agonia e incompreensão.
     Contaram-me que o monstro era um caminhão do qual fugira desesperadamente.

Patrícia


Brasília, 11 de agosto de 2009




Patrícia,


     Aí vão seus medicamentos.

     Prestam-se na medida para aquela menina que tem medo da morte, das doenças, das caras feias e de... fotógrafos!

Servirão também para quem se angustia com o sofrimento alheio, com a pobreza, a ignorância e a solidão.

E talvez te ajudem, mas só um pouco, quando tudo isto não for alheio, mas próximo, afetando quem se mais ama.

     Na verdade Patrícia, queria ter para ti uma vacina contra todos os males do mundo e da vida.

Somente posso emprestar-te, porém, um pouco da coragem que eu talvez tenha herdado daquela valorosa pessoa que foi Dona Stella.



Um beijo e todo o afeto!




Juca

sábado, 12 de novembro de 2011

Turbulência

                                       
                                            Crônica dedicada a quem gosta de avião e àqueles que detestam voar.

        Uma experiência de vôo em tempo ruim sucedeu-nos ao fim de uma manhã de dezembro. Dezembro do bom tempo de festas. Dezembro do mau tempo de festas outras que acontecem nos céus.
      Comandava o monomotor PT- RHF, Embraer 711-ST, Corisco Turbo. Saíramos de Brasília às 04:30 (07:30 Zulu). Em um vôo por instrumentos, íamos para Natal. Fazer essa viagem não foi sugestão, foi insistência,   teimosia mesmo de nossa pequena Stella que só imaginava praia, sol e mar, lá longe desta Brasília chuvosa. – Vamos pai, vamos pai, vamos! – E ficava a repetir-me incontáveis vezes. Cedi.   Tomada a decisão da viagem, esta história começou a ser traçada.
     Então, foi abrir umas cartas aeronáuticas, planejar rotas, conferir tempo, distâncias, quantidade de combustível, locais de reabastecimento e outros detalhes.
       O prognóstico das condições de tempo em rota e nos aeroportos de destino conheci na sala de tráfego, naquela madrugada, através das informações codificadas, conhecidas como METAR, TAF, SIGMET.  E  pela análise dos ventos e observação das fotos de satélite.  Toda assessoria ofereceu-me um   meteorologista militar. Paciente e solícito  como um  santo às 04:00 da manhã.
       A decolagem de Brasília, o vôo até Bom Jesus da Lapa foram tranquilos, agradáveis. De Bom Jesus a Petrolina não se via o solo. No nível 130 (altura de uns quatro km), sobre o topo de cerrada camada de nuvens, a vista lá embaixo era a daquele infindável tapete branco. Nessas horas sente-se paz, isolamento, solidão. Tive saudades da Terra. A mesma saudade que muitos marinheiros quem sabe, de vez em quando, sintam.
      Logo adiante, a vinte minutos de nossa escala, quebrar-se-iam todas aquelas saudades, monotonia, paz...  Um imenso paredão cinza chumbo erguia-se a perder de vista sobre a camada branca. Lindo. Ameaçador. Uma torre sem teto e sem fim que nascia no piso em que estávamos e que parecia dizer-nos: fim de linha! Fechava a passagem pelos lados e à frente, proa de Petrolina. Atrás, Bom Jesus, há uma hora e trinta. Desconhecia alternativas de pouso ao lado. Executaria o que dizem ser a mais sábia e respeitável manobra da aviação: voltar?  Refleti sobre o mau tempo. Quanto mais tarde, com certeza pior...  
     Vem nessas horas uma espécie de tempestade mental causada por conflitos. Refletir sobre uma situação perigosa para decidir rápido e sem erro gera ansiedade.   São pensamentos como os que nos perguntam: foi ou não foi uma imprudência decolar neste fim de dezembro com um tão evidente prognóstico de mau tempo, através da nossa longa rota? Vi-me diante de uma encruzilhada, sem tempo para pensar, sem tempo para racionalizar, sem tempo a perder. Encruzilhada que podia conduzir-nos para a vida ou para a morte. Se continuasse seria em busca do perigo? Seria um risco desnecessário? Haveria com grande probabilidade, severa turbulência. E talvez formação de gelo. Desses que já fizeram muitos aviões quebrarem-se. Muitos aviões cair!   Se voltasse restar-me-ia pouco combustível para contornar formações de nuvens pesadas, com todo risco de encontrar outros paredões. Sabemos que nessa época eles adoram o calor da tarde para formarem-se. Inoportunas reflexões...
   Uma espécie de turbulência senti dentro do peito. Nessas horas o coração me bate forte, descompassado. Com determinação, autocontrole, competência e coragem, consegui o que foi e o que será sempre a única condição a qualquer um para sobreviver numa emergência dessas. A coragem deve sobrepor-se ao o medo. Desta vez, um pouquinho só acima dele e sem pânico. Todos sabem que pânico mata. Decidido, penetrei nas nuvens negras. 
     O encontro de massas de ar quente e ar frio, a umidade, as correntes ascendentes e descendentes, a formação de nuvens pesadas são os fenômenos que causam turbulência, raios, gelo. O natural e bom que se transforma em mau quando se está no mar ou no ar.
     A esperança de chegar a Petrolina num vôo sereno dava ainda um clima de conforto à cabine do RHF. Perigosa ilusão imaginar que se possa nesses dezembros brasileiros, voar assim.  Ainda mais sem Radar, sem Stormscope, ou outros instrumentos que nos indicam um caminho pacífico entre nuvens rudes e desagradáveis. A diferença está entre voar sossegado em clima fresco e gostoso, tendo como referência uns pontos bem determinados no mapa da nossa rota, mostrados numa tela que informa clara e precisamente onde estão as áreas proibidas, ou um vôo cego, com incertezas e sobressaltos a cada momento.  Para quem gosta de adrenalina...
    Ao penetrar naquele insondável e assustador véu cinza escuro socorri-me, no sufoco da hora, aos ponteiros indicadores dos ADF (os Automatic Direction Finder, aparelhos de navegação). Quem sabe eles se prestariam agora como improvisados indicadores dos locais das trovoadas? Acontece que ponteiro de ADF sempre deflete na direção do raio, o que em tempo de chuva se nota costumeiramente, ao seguir um curso qualquer. De fixo e apontado para a estação sintonizada, o ponteiro salta para uma nova posição: a do muitas vezes distante Cumulus Nimbus (CB).   Consolei-me com o pensamento de que esses ponteiros dar-me-iam uma indicação aproximada da localização dos núcleos dos CB – local onde moram os maus tempos e continuei no rumo de Petrolina, procurando desviar o curso para o lado oposto ao dos saltos dos meus prestimosos ponteiros.
     Em vôos por instrumentos, a varredura visual – do horizonte artificial a cada instrumento e de cada instrumento novamente ao horizonte – passou a incluir os mostradores dos ADF.   Ao se cruzar turbulência forte, o piloto automático de vários aviões, e também o do Corisco, deve ser desligado e a tarefa de manter a aeronave em correta atitude de vôo fica toda com o comandante, que tem ded fazer a contínua, e por isto cansativa vigilância aos instrumentos de vôo: horizonte artificial, velocímetro, altímetro, indicador da razão de subidas e de descidas, bússola giroscópica, indicador de curva e derrapagens. A informação de cada instrumento determina as correções necessárias. Pilotar consiste nisto. Quando não há esse controle seguido das devidas correções, perde-se a atitude de vôo, atingem-se velocidades incompatíveis com o voar ou com o avião e ele pode cair ou quebrar-se no ar ou entrar numa espiral descendente. Qualquer desses incidentes, quase sempre mortais.
      Entramos em chuva pesada, tão forte que das asas só se viam as raízes. O resto era água contorcendo-se, espirrando num spray brilhante, assoprado pela hélice, sob aquele mar cinza. Tratava-se de um barco?  Mergulhado em tanta água, um submarino, talvez. Os raios, relâmpagos e trovões não se percebiam lá em cima, mas cá do lado e sobre nossas cabeças. Os abalos, as incontroláveis subidas e descidas cada vez mais fortes, a instabilidade, o avião querendo girar de ponta-cabeça, os solavancos, isto tudo ao mesmo tempo, é absolutamente enervante. Teme-se não conseguir controlar o aparelho. Apavora a possibilidade de aqueles esforços estruturais quebrarem a aeronave em algum ponto crítico, como asas ou sua delicada e vital cauda, constituída pelos estabilizadores vertical e horizontal, sem os quais o avião torna-se uma bola de giro e queda livre.
    A temperatura externa atingia 10 graus negativos. Formar-se-á gelo nas asas, gelo na hélice? Acontecendo isto as superfícies aerodinâmicas deixarão de ser asas, deixarão de ser hélice; o avião cai. Gelo lá fora. Suor no rosto, nas mãos, nos pés, nas costas, cá dentro. Frio na barriga? Pior. Frio na alma! 
     Entre navegar no mar ou nas nuvens e guiar um carro, a imensa e obvia diferença é que aqui não se pode encostar e esperar o mau tempo passar. Há de se navegar de qualquer jeito. Para frente, para trás, para cima ou para baixo, em curvas leves ou de grande inclinação, em vôo sereno ou turbulento há de se pilotar com segurança! E às nuvens negras que continuavam a abusar de nossa paciência, devíamos responder com serenidade e segurança. Fizeram-nos agora entrar num formidável elevador que, num instante, subiu aquele edifício de mil metros.  Porém se o avião for levado e levado para cima, faltar-nos-á de oxigênio, esvairá a nossa consciência!  Foi necessário uma  pancada na cabeça. Garantiu-me que alcançáramos o último andar. Caía agora o elevador. A brusca alternância de movimentos me fez bater no teto da cabine. Doeu. Sabe o que é pauleira em aviação? O que é sufoco, você sabe. Voar em mau tempo é como estar em combate, esperando pelo pior.
    Quanto aos meus ADF, pequenas e ilusórias segurança contra os Cumulus Nimbus, para que serviam, se justamente estávamos dentro deles? Ao nosso fiel motor Continental que rugia impassível e regular lá fora, acrescentáramos mais dois motores cá dentro. Os ponteiros dos ADF, indicadores fieis da posição das estações de rádio em terra, que durante décadas conduziram os aviões para o rumo certo e seguro dos aeroportos, instrumento de navegação criado muito antes de outros, como o VOR e GPS, giravam perdidos, como que à procura dos tais núcleos de CB que deviam estar por toda a parte. Ou então um demônio os fazia comicamente girar, por puro deboche a este pobre aviador.
     Bastou, porém que esses malditos ponteiros sossegassem, para que tempo fosse clareando. Para finalmente o avião entrar numa estrada sólida.
      Nem sei dizer quanto tempo durou a festa no céu. Ah, mas sei dizer sim do quanto de alívio, de alegria, redenção e glória, a gente sente! Com calma e um longo suspiro, reparei surpreso que, pela vitória alcançada não houve aplauso, nem sequer um UFA! Intrigante. Os passageiros pareceram-me indiferentes aos esforços, às apreensões, aos temores. A esse meu silencioso e decisivo combate. A irresponsável responsabilidade totalmente ignorada...
      Os filhos, três crianças, ficaram imóveis por todo tempo. A meia hipóxia daquelas alturas explica essa forma milagrosa de não se apavorar. Profundo, delicioso e abençoado sono. A quarta passageira assentada atrás com o mais novo no colo – a solidária, destemida e brava Rosalba, permaneceu como é de seu caráter, serena, calma, confiante. – Se tecendo crochê esteve,  tecendo crochê continuou.   

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Elisa

        Vinda do rio soprava uma fresca brisa àquela hora. Em alguns chegava a causar ligeiro arrepio: manhã de domingo, sete e meia. A névoa não queria sair do alto das serras, sugerindo fé aos crentes e beleza à cidade.   
        Além de místico, há o caráter social e lúdico desses encontros religiosos: todos se revêem, divertem-se e atualizam comentários e notícias. São aí que também prosperam as más línguas.
        De paletó os homens, feitos muitas vezes do simpático brim cáqui. Ou camisa de mangas compridas em quem não se dava a esses luxos. As mulheres, vestido longo, xale, blusa ou casacos para cobrir também os braços. Crianças, de qualquer jeito, mas roupa limpa e muita alegria.
        Uma família se dirigia à igreja. Sebastião, muito sério; a filha, de rosto triste e vestido rosa enrugadinho que contrasta  com sua pele lisa e morena; o filho de uns 9 anos, compenetrato em sua calça  comprida; e  Elisa,  magra, alta, sem jóias e nem maquiagem, veste uma roupa justa,  preta. Sua expressão é enigmática. O quase grave semblante é emoldurado por um quase sorriso. Todos olham-na com atenção enquanto    segue  de braços com o marido, elegante e afetuosa.
         Na igreja, com seus óculos de grossas lentes esverdeadas, o padre Alberto cumpria solenemente os rituais. Após a comunhão, após os sofridos senta-levanta-ajoelha, vem um sermão desagradável, dirigido às mulheres que usam decotes ou mais graves motivos de  reprovações.  Daquelas lentes tanto se podiam ver refletidas as luzes da igreja, como as pragas dirigidas àquelas que, dizia, eram guiadas por Satanás. Para essas quase imperdoáveis pecadoras, reservava a fria descrição dos quentes horrores do inferno. Mas os longos e aborrecidos sermões são  os que, no fim, deixam a sensação de alívio geral, de redenção, de alegria. Como prêmio, toda liberdade para voltar a desfrutar a vida, livre, leve e solta.
         Os domingos tem  ainda passeio na praça, sorvete, cinema, cachaça nos botequins, futebol no campo ou no rádio, ajantarado em casa com um cochilo depois. Sentar na calçada para pegar a fresca da noite e deitar cedo para recomeçar a rotina da segunda-feira.
         Cedinho, as crianças arrumam-se para ir à escola e o pai despede-se para voltar à   fazenda, onde permanecerá até o próximo fim de semana. 
        Então Elisa, a habilidosa costureira, a zelosa mãe, a doce esposa e distinta senhora pode, tranqüilamente  retomar uma vez mais, às suas brincadeiras favoritas. Alta noite, movimentada madrugada, enchem-lhe a casa: namorados de todas as idades, atributos e cor. O favorito deles, adolescente ainda, deixa-se trair pelo seu cachorro de estimação que teima  ao acompanhá-lo e a montar guarda à porta da casa. 
         Pouco a pouco aquele vai-e-vem noturno chega, das más linguas do povo, aos ouvidos de um zeloso irmão, numa cidade distante. Todos sabiam, menos o marido, é claro, dessas traições e injúrias. E Elisa recebe de surpresa a visita daquele, afinal de contas, imprudente cunhado. Ao Onofre, falta agora coragem. Será terrível abordar esse assunto. Será penoso contar tudo ao seu dileto irmão. Ser recebido por todos, com atenção e alegria, só tornavam as coisas mais difíceis. Era uma questão de honra,  honra da família. Reuniu coragem e decidiu:
         - Tãozinho, vamos ali, pro bar? A gente toma uma cerveja, conversa um pouco... 
         Sebastião acabou seguindo-o, inocente. Companhia inútil se considerava,   ele que nem beber, bebia. E o Onofre  toma muita cerveja. Fala, fala, fala... Sua coragem desapareceu. Não chegava para ele o momento certo de que tanto precisava. Sebastião, homem disciplinado e metódico, vendo que não tinha o menor propósito ficar ali a escutar um irmão bêbado com aquela conversa mole que só atrapalhava a sua hora de descansar, levantou-se decidido a voltar sozinho. Onofre segurou  com carinho e proteção as grossas mãos de quem está acostumado a pegar enxada e a tantos outros afazeres rústicos de uma pequena  fazenda. Constrangido, quase chorando de pena por sentir que  iria magoar o irmão que amava e de quem  se julgava protetor, reúne coragem, toma fôlego, como que para soltar uma bomba.  Agora, no tom duro e grave  que se usa para tratar de coisas graves, diz sem meias palavras, com um suspiro: 
          - Sebastião... Ouvi dizer que a sua mulher está  dando... dando  feito galinha!?  
          Tião fechou a cara.  Que sujeito atrevido, que   palavras grosseiras, que coisa desagradável! A indignação seria o prenúncio de uma explosão de cólera, de dor e de desgosto. Mas não. Significou  apenas um muxoxo desse  imperturbável marido. Que cândido disse: 
          - Ah... dar até que ela dá, mas não é tanto assim não, ô Onofre!  

domingo, 9 de janeiro de 2011

Ladrões de Galinha

          Nunca pude ingressar no seleto, especializado e secreto grupo dos ladrões de galinha. Isso dava-me uma ponta de frustração; conformada, mas uma ponta. Jamais seria aceito por aqueles caras.
          Acontece que fui ganhando, sem querer, a fama de menino obediente, certinho, honesto, exemplar. E cada vez me via mais afastado das pequenas transgressões, seja por policiamento externo, seja por auto-censura.
          Uma só vez, nem sei por que, vi-me no covil dos bandidos. Olhei em volta com surpresa e admiração: lá eles estavam, senhores de si, sendo o Sérgio o líder daquela temida quadrilha. 
          Sobre a rústica mesa haviam ainda alguns pedaços. Nada me ofereceram, mas experimentei. Como especialista, não em roubo, mas em cozinha e sabores, pude  logo sentenciar: era a mais   gostosa, apimentada  e colorida galinha com arroz  que jamais provara! Além de surpreso,    estava  intrigado. Muito mais do que fome de galinhadas, poderiam a impunidade, a adrenalina,  o sadismo, perpetuar essas violações?  Será o fato de a galinha ser roubada que a fazia tão boa? Seria apenas sugestão psicológica? Não. Eram  método e tecnologia mesmo! A começar pela criteriosa escolha: saúde, porte, raça, forma e vitalidade do exemplar. 
           A altas horas, uma, duas vezes por semana,  o grupo de moleques entrava no quintal da vez.  Não havia como interromper esses furtos,   por  mais rotineiro que  se tornassem.       Não sei se usavam lanternas.   Olhos de águia, sim. Com eficiência de profissionais,  agilidade de gatunos   e critério de granjeiro, escolhiam a mais formidável galinha daquele puleiro. Ela morria na hora, sem dar um pio, porque seu pescoço fora pronta e gentilmente torcido. Do quintal ao covil era questão de minutos. Mergulhada em água fervente, depenada, sapecada,  aberta e tratada,    ganhava depois    os refinados temperos. O magnífico fogão era outra história: uma forja que atiçava chama de carvão, por meio de uma turbina girada com toda velocidade pelo cozinheiro, de tradicional e reconhecidíssima   família de gênios do forno e fogão.
          Tinham alí  uma oficina de carros transformada, àquelas horas, em cozinha e original ambiente para as reuniões. Lá preparavam e festejavam a ceia. Imaginei mais tarde que aquelas rodas poderiam inclusive ser regadas  a  cachaça.  O que seria também uma explicação para a coragem e determinação do grupo.
          Mas nem tantos quintais haviam em Ferros, a sustentar por meses aquelas farras.
          Assim, certa noite, viu-se o Sérgio no constrangimento de conduzir seus amigos ao quintal do Vovô. Seria, para ele, com certeza terrível roubar aquela casa onde ele era tratado como príncipe, onde quase todo   dia ele almoçava, jantava ou comia quitanda. Onde era prato freqüente o franguinho com quiabo e angu. Que fazer? Era dever do ofício. Naquela noite havia de ser na casa do Vovô. Do respeitado, temido Vô Zorô.
          Pois foram, depois de assaltar com sucesso e sigilo dezenas de casas, dar de cara com o Vovô, armado com seu sono leve, seu apurado ouvido, seu tremendo senso de propriedade e sua inseparável pistola Browning, apontada para eles.
          Constrangedora surpresa:  Você, Serginho?

sábado, 1 de janeiro de 2011

Medo do Escuro

      Onde viviamos,   do jeito que   viviamos, era incomum criarem-se medos.
    Eu andava de fato destemido e   por isto me dei muito mal.  Xinguei de fedaputa um colega de Grupo que já tinha cara,   porte e atitudes de homem. Imprudência:  um direto no queixo, partido do imenso rapaz indignado e julgando-se cheio de razão ao defender a honra de sua mãe, surpreendeu-me. Acabou com aquele atrevimento todo, jogando-me  assustado e ferido ao chão.
   Um medinho,  uma brincadeira  adotada por quase todos,  acontecia de tempos em tempos e era folclórico: o medo da   Arminda Doida. Mulher  fortíssima que invadia Ferros a cada verão, assustava   meninos e moças avessos à emoções fortes. Morena, alta e musculosa, observadora e crítica, tinha a boca expressiva e olhos inquizidores. Era   vistosa, mas  suja e sem escrúpulo algum. Parecendo até gente sensata, era capaz de manter por um minuto uma conversa  coerente. Para o espanto de seus chocados interlocutores, em seguida, sem levantar a saia,   urinava e defecava em pé, com a maior  naturalidade.
     Dizia-se que dela poderias fugir,  desde que ela não te percebesse. Se ela te visse, te requisitasse, te abraçasse, te  beijasse ou te xingasse, haverias de, ainda que tuas pernas tremessem, ou sentisses muito nojo, fingir  calma, tranquilidade, bom humor, satisfação absoluta. Tudo isto com toda  paciência. Do contrário, meu velho,  ela te esmagaria, te mataria, com seus formidáveis braços e mãos.
    Mas, histórias de assombração se ouvíamos, não dávamos importância. Desafios, quais fossem, eram para ser enfrentados e vencidos. Aranhas, escorpiões, cobras, lagartos e tantos outros bichos, se existiam, tratávamos de ignorá-los. Realmente, eu não acreditava  nem em jacaré! Para mim, jacaré era como fantasma: não existia e pronto. Morrer afogado no rio Santo Antonio era azar daquelas infelizes crianças que não sabiam nadar. Porque nadávamos nós, moleques invencíveis, muito bem. Brigas de rua, devíamos fazer de tudo para evitar. Apesar do praguejar constante  dos padres, não tinha essa história de  medo de ir para o inferno com os nossos pecados. Para isto, tínhamos que evitar tudo o que  nos parecesse moralmente errado.
        Não é que nesse estado de espírito, passou-me pela cabeça que era aflitivo não ver e, na primeira noite que faltou luz na cidade, pude comprovar o quanto era. Assim foi que desenvolvi uma espécie de neurose. Neurose  do escuro. Não medo de ser atacado por alguém ou algo que fosse, mas simplesmente horror de não enxergar. Qualquer coisa que pudesse distinguir, uma sombra, uma tremulante luz de vela, um vaga-lume, seriam suficientes para deixar-me tranqüilo. Aflitivo só, era nada ver.
     Sem revelar a ninguém o meu problema, vinha-me a cada oportunidade de viajar, esta questão limitante: e se eu ficar em um lugar escuro?
      Moravam tia Vera, tio Diniz e primos em um apartamento, no Edifício San Remo, em Belo Horizonte. Num fim de ano viajei para lá e hospedei-me com eles. Uma pequena árvore de natal fora colocada na sala. Luzes e  bolas, como eu nunca tinha visto, ornamentavam-na. O quarto que reservaram para mim não tinha nenhuma lâmpada, mas o reflexo da árvore de natal iluminada dava-me o conforto e tranquilidade noturnos de que tanto precisava. Preparamo-nos para dormir. Algo muito sério aconteceu: um intromedido foi à árvore e a desligou. Fiquei aos sobressaltos. Neurose é assim. Um nada pode provocar pânico. A esperança que me restava naquela situação, nascera de alguma esperteza e certa criatividade.  Pude segurar-me ante aquele  pânico latente que ia  tomando conta de mim.
      Acontece que  no meu quarto havia um rádio  que se acendia e iluminava o seu grande dial. Devagarzinho, liguei-o. Tio Diniz, que ainda não adormecera, veio e desligou o meu rádio. Esperei, ardilosa, paciente e corajosamente que ele adormecesse. Ao ouvir os primeiros roncos daquele tio incompreensível levantei-me, pé por pé, para ligá-lo. O desgraçado do rádio começou a pipocar, a estourar, toda vez que o elevador do prédio subia ou descia. E lá  vinha meu tio praguejando, não sei se contra um rádio automático ou contra um moleque a sacaneá-lo. Desligou-o. – O que é que eu faço? – Vou esperar. Ele,  de uma hora para outra, acabará dormindo e aí eu fico com este rádio de maravilhosas luzes brancas.
      A cena se repetiu outras vezes. Quando o Diniz se levantava  para desligar o aparelho,   era   a   impaciência e raiva a protestar contra a quebra do silêncio, a perda da repousante obscuridade, a interrupção do sono. Se foi angustiante me ver  ameaçado definitivamente pela escuridão, e se foi   desagradável sentir  meu tio desprovido de qualquer senso de admiração pelo seu hóspede, tudo isto tornou-se também, definitivamente engraçado.
       Não sei quem venceu esta briga. Quem dormiu primeiro. Só sei que a partir dessa noite nunca mais senti medo do escuro.