segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Elisa

        Vinda do rio soprava uma fresca brisa àquela hora. Em alguns chegava a causar ligeiro arrepio: manhã de domingo, sete e meia. A névoa não queria sair do alto das serras, sugerindo fé aos crentes e beleza à cidade.   
        Além de místico, há o caráter social e lúdico desses encontros religiosos: todos se revêem, divertem-se e atualizam comentários e notícias. São aí que também prosperam as más línguas.
        De paletó os homens, feitos muitas vezes do simpático brim cáqui. Ou camisa de mangas compridas em quem não se dava a esses luxos. As mulheres, vestido longo, xale, blusa ou casacos para cobrir também os braços. Crianças, de qualquer jeito, mas roupa limpa e muita alegria.
        Uma família se dirigia à igreja. Sebastião, muito sério; a filha, de rosto triste e vestido rosa enrugadinho que contrasta  com sua pele lisa e morena; o filho de uns 9 anos, compenetrato em sua calça  comprida; e  Elisa,  magra, alta, sem jóias e nem maquiagem, veste uma roupa justa,  preta. Sua expressão é enigmática. O quase grave semblante é emoldurado por um quase sorriso. Todos olham-na com atenção enquanto    segue  de braços com o marido, elegante e afetuosa.
         Na igreja, com seus óculos de grossas lentes esverdeadas, o padre Alberto cumpria solenemente os rituais. Após a comunhão, após os sofridos senta-levanta-ajoelha, vem um sermão desagradável, dirigido às mulheres que usam decotes ou mais graves motivos de  reprovações.  Daquelas lentes tanto se podiam ver refletidas as luzes da igreja, como as pragas dirigidas àquelas que, dizia, eram guiadas por Satanás. Para essas quase imperdoáveis pecadoras, reservava a fria descrição dos quentes horrores do inferno. Mas os longos e aborrecidos sermões são  os que, no fim, deixam a sensação de alívio geral, de redenção, de alegria. Como prêmio, toda liberdade para voltar a desfrutar a vida, livre, leve e solta.
         Os domingos tem  ainda passeio na praça, sorvete, cinema, cachaça nos botequins, futebol no campo ou no rádio, ajantarado em casa com um cochilo depois. Sentar na calçada para pegar a fresca da noite e deitar cedo para recomeçar a rotina da segunda-feira.
         Cedinho, as crianças arrumam-se para ir à escola e o pai despede-se para voltar à   fazenda, onde permanecerá até o próximo fim de semana. 
        Então Elisa, a habilidosa costureira, a zelosa mãe, a doce esposa e distinta senhora pode, tranqüilamente  retomar uma vez mais, às suas brincadeiras favoritas. Alta noite, movimentada madrugada, enchem-lhe a casa: namorados de todas as idades, atributos e cor. O favorito deles, adolescente ainda, deixa-se trair pelo seu cachorro de estimação que teima  ao acompanhá-lo e a montar guarda à porta da casa. 
         Pouco a pouco aquele vai-e-vem noturno chega, das más linguas do povo, aos ouvidos de um zeloso irmão, numa cidade distante. Todos sabiam, menos o marido, é claro, dessas traições e injúrias. E Elisa recebe de surpresa a visita daquele, afinal de contas, imprudente cunhado. Ao Onofre, falta agora coragem. Será terrível abordar esse assunto. Será penoso contar tudo ao seu dileto irmão. Ser recebido por todos, com atenção e alegria, só tornavam as coisas mais difíceis. Era uma questão de honra,  honra da família. Reuniu coragem e decidiu:
         - Tãozinho, vamos ali, pro bar? A gente toma uma cerveja, conversa um pouco... 
         Sebastião acabou seguindo-o, inocente. Companhia inútil se considerava,   ele que nem beber, bebia. E o Onofre  toma muita cerveja. Fala, fala, fala... Sua coragem desapareceu. Não chegava para ele o momento certo de que tanto precisava. Sebastião, homem disciplinado e metódico, vendo que não tinha o menor propósito ficar ali a escutar um irmão bêbado com aquela conversa mole que só atrapalhava a sua hora de descansar, levantou-se decidido a voltar sozinho. Onofre segurou  com carinho e proteção as grossas mãos de quem está acostumado a pegar enxada e a tantos outros afazeres rústicos de uma pequena  fazenda. Constrangido, quase chorando de pena por sentir que  iria magoar o irmão que amava e de quem  se julgava protetor, reúne coragem, toma fôlego, como que para soltar uma bomba.  Agora, no tom duro e grave  que se usa para tratar de coisas graves, diz sem meias palavras, com um suspiro: 
          - Sebastião... Ouvi dizer que a sua mulher está  dando... dando  feito galinha!?  
          Tião fechou a cara.  Que sujeito atrevido, que   palavras grosseiras, que coisa desagradável! A indignação seria o prenúncio de uma explosão de cólera, de dor e de desgosto. Mas não. Significou  apenas um muxoxo desse  imperturbável marido. Que cândido disse: 
          - Ah... dar até que ela dá, mas não é tanto assim não, ô Onofre!  

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