quarta-feira, 12 de março de 2014

Do Lado de Cá e do Lado de Lá

DO LADO DE CÁ E DO LADO DE LÁ 

 
Regularmente, caprichosamente, ano após ano, década após década, insiste o velho Santo Antonio, venerado rio ferrense, a levar para sempre descuidadas crianças.
 – A sua beleza e extraordinárias qualidades de rio limpo e piscoso explicam a contraditória veneração.
Quase que como certo ao desaparecerem as crianças, elas são encontradas horas ou dias depois, mortas, corpo inchado, dedinhos roídos por peixe e o imenso desespero dos pais, a dor de parentes e amigos... A gente de Ferros carrega este trauma.
Vivia eu entre o lado de lá e o lado de cá do rio, inquieto, sempre a circular na minha preciosa bicicleta vermelha, Monark, aro 22, presente de meu pai que ficou comovido, menos com um pedido de moleque, do que com um comentário do lojista.
Deu-se assim: em Ferros não se vendiam bicicletas. Crianças nunca andavam de bicicleta por lá.  Adultos sim. Havia umas bicicletas pretas antigas, magras, altas, tristes e indestrutíveis.  De aro 28, da marca Philips, elas eram um patrimônio de família a passar de pai para filho.
Ganhar uma bicicleta sempre foi um desejo meu. Sabia, porém que, para meus pais estava fora da cogitação darem-me uma. Tinham certamente outras prioridades para gastar o seu nem sempre abundante dinheiro. E eu carregava comigo o velho desejo de ter uma bicicleta (e o que é um velho desejo para uma criança de oito anos?) este era um sonho que no meu entender nunca poderia ser alcançado. Estava, porém perfeitamente conformado com esta impossibilidade. 
Um dia a loja do Moacir chamada também de Primavera recebeu e expôs três bicicletas para adulto e uma para criança, todas vermelhas, da marca Monark.  Elas verdadeira e intensamente encantaram–me! A sedução começava com a perfeição das brilhantes rodas raiadas vestidas com pneus pretos, seguia pela intensa percepção da elegância e fluidez daquelas formas. Chamavam-me atenção o quadro e os pára-lamas vermelhos que nas de adulto eram ainda adornados com uma garupa; o guidon cromado, com suas curvas,  os seus freios e  os punhos pretos. O selim, também preto com molas debaixo. E os pedais dando aquele toque de movimento, de velocidade , de potência! 
Eu me estatelei ali, na porta da loja por dias. Saia para comer e dormir. Não conversava com ninguém nem na rua e nem em casa e dia e noite só pensava nas bicicletas. Isto simplesmente me absorvia por completo.
 Um dia olhei com admiração – admiração não! – olhei com veneração para o Olímpio que pôde comprar a sua linda bicicleta de adulto. Passei por isto a respeitá-lo mais, pela nova categoria que doravante ostentava: a de proprietário de uma bicicleta Monark! As outras continuaram na loja até não sei quando. Uma tarde avistei meu pai (continuava eu nas proximidades da loja). Ele levou-me para dentro da loja. Tiraram uma bicicletinha, encheram os pneus, um vendedor disse que eu deveria aprender a andar e meu pai falou-me que a bicicleta era minha. Milagrosamente minha! Não consigo dizer da minha alegria. E como que milagrosamente também, montei e saí pedalando sem cair. Este até hoje foi o melhor presente que ganhei na vida! E cheguei em casa tarde - 10 da noite, depois de andar muito, adorar muito aquela bicicleta. E foi com imenso entusiasmo que a apresentei à minha mãe para  juntos examinamos os acessórios da bicicleta. Além da bomba de encher pneus, havia dentro de uma bolsa presa no selin, um jogo de chaves enroladas numa flanela amarela e um tubinho de borracha escura que mais tarde ensinaram-me, era a tripa de mico, usada nas válvulas pneumáticas. Alguns dias depois ouvi meu pai contando esta história: disseram-lhe na loja: Matta o seu filho passa o dia inteiro aqui, olhando para a bicicleta. Dê-lhe uma! E bastou isto.  Um simples argumento a tocar forte o sensível espírito do poeta e ardiloso advogado criminalista que era o meu pai. Refleti depois que jamais percebera que era observado em meu namoro com as bicicletas, namoro platônico. Já disse, estava conformado de nunca ter uma bicicleta e isto não me importava. As bicicletas? Sentia que me bastava vê-las para contentar-me. 
Mas, lá estava eu pedalando sem parar por toda a cidade...
 De tantas idas e vindas os caminhos foram ficando curtos, as paisagens monótonas, as pessoas iguais, a ponte pequena e a inquietude maior.
Vou viajar. Assim tomada a repentina decisão, escolhida mentalmente a rota, convidei, o meu interessante e curioso amigo Quidim. Ele, sem pestanejar aceitou ir como passageiro, sentado na improvisada garupa que era o selim da bicicleta. Eu ia à frente cuidando da direção e dos pedais.
E a viagem foi longa. Demorou um bocado. Manhã e tarde entre ida e vinda pelas verdejantes estradas, beira rio, beira serras.
Já tarde, final do dia, entramos felizes na cidade. De longe avistamos nossas casas. Que estranho, nunca víramos tanto gente nas portas... Entusiasmados com o nosso feito, não podíamos imaginar que éramos a razão de tanta gente e de tantos carros na rua. Estranho também era a forma como nos olhavam. Ao chegar fomos puxados, cada um, bruscamente, para dentro de nossas casas.
Ao conversar com meus assustados pais é que fui descobrir que nos julgavam  já no lado de lá. Mortos, afogados no Santo Antônio. Igual a tantos que eles já viram. 
Enquanto notava a expressão aliviada e feliz de seus rostos, ouvia berros do Euclides. Meu pobre amigo sentiu no corpo que a ansiedade de seus pais desafogava-se numa homérica surra.



Brasília, 07.07.99                                  

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