terça-feira, 11 de março de 2014

Natal em Ferros


  






Lá nos Ferros, o atarracado Fernando Doxa, cachaceiro e gozado, deu prá ficar nos últimos tempos,  sem graça, amargurado, rabugento. À boa exceção, um filho adotivo que recebia manifestações de ternura e de frequentes brincadeiras daquele velho homem tornado seu pai. Porte de adulto, dócil, infantil e bobo, Coco era para ele uma das poucas alegrias a restar-lhe na vida.
Embora cansado e sem ânimo, Fernando Doxa se esforçava para obedecer à D. Eva. A esguia, espevitada patroa há tempo o domesticara... 
Num dos mais chuvosos dias de véspera de Natal daquele pedaço de Vale do Rio Santo Antônio, Eva lhe cobrou:
- Fernando, e as mulas, e a lenha, como é que ficam?
- Hoje? Com essa chuva? – Perguntou desta vez indignado, com ousadia.
E ouviu:
- Hoje, meu filho! Devia ter sido ontem, mas o senhor não prestou para isto. Vá!
- Mas é Natal...
- Ah, só se for para eu ter mais prejuízo! Muita gente encomendou-nos lenha há uma semana. Se essa bendita não chegar, dinheiro não vem... Tem mais: como serão assados os frangos, as leitoas, o pão de queijo dessas pessoas, justamente para a ceia? 
- Com a lenha que o desgraçado aqui, debaixo de chuva, tem de buscar, respondeu mal educado. 
Vestiu a capa de chuva e caminhou ao estábulo para arriar sua mula e juntar a tropa. Montado, de chapéu já pingando chuva e a cara pingando raiva, tocou morro acima, às terras da família. No alto, a lenha já cortada e protegida das águas, encontrava-se à espera de transporte.

Corre a tarde, cai a noite. O tal Fernando não retorna. Pátio da casa, lugar de descarregar mula de carga, vazio. Transtorno, preocupações. 
Perturbada, menos com seu marido sumido do que com os seus compromissos, com a lenha, com as bestas, Eva resolve ir à procura de notícias. Atenta a tudo, a todos pergunta:
- Viram o avuado daquele Fernando Doxa? - Mas, nada.
Já quase à hora da missa do galo, chega num fim de rua, a uma venda escura. Acerta. De fato lá estava o Fernando Doxa, acompanhado de seus fieis amigos, companheiros de gole, de dor e de alegrias. Até então seguro de si, conversado, feliz. 
Espécie de botequim e empório rudimentar, ali se encontravam animais amarrados à porta. Os ares têm cheiro de urina, de fumaça de cigarro de palha, de banana madura dependurada, de bacalhau salgado, de rapadura, de  toucinho frito, de nota velha, de sujeira antiga, de cachaça e de gente suada e misturada. 
Naquela noite a venda estava cheia. D. Eva olha em volta com óculos que lhe emprestavam ares ameaçadores. Coloca as mãos nas cadeiras, balança a cabeça e diz:
- Sim senhor! Sim senhor! Irresponsável. Cachaceiro. E logo com o nosso trato de lenha. Bem ou mal nosso ganha-pão. - Reza ao Fernando Doxa um sermão dos diabos. Por tabela, aos seus companheiros. Lamenta a má sorte de suas valiosas mulas ainda carregadas carentes de seus restauradores banhos de rio, hoje dispensados pelo Fernando Doxa. Reclama da desatenção e do pouco caso daquele sujeito. De suas péssimas qualidades como peão de tropa. Diz gritado, para magoar. Tem a pura intenção de escandalizar, de propagandear a todos, da venda e à vizinhança, as más qualidades que enxerga no Fenando Doxa:
- Esse sujeito não vale nada. É ruim como tropeiro e pior como marido. - E fala, fala igual a tantas outras, aquelas sempre ciosas de suas razões, de seus interesses...
Ele abaixa a cabeça. ouve calado. Ouve calado. Os amigos da venda, silenciam-se. Precavidos, se encostam, à espera prudente de que aquilo termine sem sobrar nada para eles. 
Fernando Doxa, embrulhado em seu encardido e úmido paletó, debaixo do seu envelhecido chapéu de feltro, levanta o rosto baço e enrugado. Lança de seus olhos verdes e sem brilho, um olhar triste de poeta bêbado. O olhar dos irresponsáveis, dos indiferentes, dos cansados da vida que levam... Ergue o dedo como que à procura de algo que se quer entender ou localizar. Com esforço para vencer o seu caráter cordato e submisso, com fala arrastada e marcante que agora denotava não somente embriaguez, mas antipatia, certa coragem e surpresa nenhuma, diz:

         - Essa voz não me é estranha...

Menção improvisada e espirituosa que saiu de acordo para defrontar o ímpeto de sua Dona. Risos tímidos, espontâneos. Sorriram os dignos, os remediados, os pobres, os oprimidos. Respirou-se. O ambiente se descontraiu. Alguém se lembra, levanta o copo cheio de pinga, ergue a voz e:

- Feliz Natal! - Outros respondem:
- Viva!
- Viva o Fernando Doxa! 

Cuias, canequinhas e copos tocaram-se no ar. Pinga espirrou.  
Fernando Doxa, em reconhecimento à singular sensação de prestígio e de independência, busca a melhor pinga. Toma o maior gole.
O torresminho que mastiga é um tira gosto divino. 

E a noite é feliz. 


                          M.C. Matta Machado
                                             Dez/2012 

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