segunda-feira, 10 de março de 2014

Um Viajante







       Um Viajante




Túlio é representante comercial da São Paulo Alpargatas. Anda por volta dos trinta e cinco anos. Grande, branco, bonachão, careca.  Leva às lojas o Conga, calçado feito de lona e solado de borracha. Para carrocerias de caminhões e teto de barracas, vende coberturas impermeáveis. Oferece também as tradicionais, econômicas, confortáveis e traiçoeiras Alpargatas Roda. Forradas com fibras de sisal em rodilhas, escorregam fácil e sem predileção, tanto pés de comodistas como os daquelas pessoas apenas modestas. 

Neste trabalho visita várias cidades do interior de Minas. Usa um Chevrolet Belair que é bonito, confortável, amplo, novo e diferente. Seu carro atrai a atenção de todos para quem automóveis americanos são raridade por essas bandas. É, porém, a atração das moças a este símbolo de luxo, conforto, sofisticação e mobilidade, o que em particular interessa ao Túlio. A cada cidade visitada, em lugar de um bônus por boas vendas, ele ganha uma nova namorada. E desta forma sua coleção vem progredindo. 


Numa ida à Itabira encontrou-se com Al-Samir, meu pai, conhecido e respeitado vendedor de tecidos destinados a ternos, camisas, toalhas, roupas de cama. Papai construíra com seu magnetismo, extensa rede de clientes e amigos. Agora de todo convenientes ao Túlio, aplicado desbravador de mercados para seus Congas e Alpargatas. Não sei qual combinação fizeram, mas por umas duas semanas percorreram naquele Belair, as bem cuidadas estradas de terra da região Centro Sul de Minas.



Inseparável de meu pai e observador atento de todos os seus planos e movimentos, tratei de me acomodar no meio da boleia, entre os dois, a esperar ansioso nossa saída. Como estava acostumado a viajar sobre um banco de lata na traseira dura de um Jeep, fiquei impressionado com a macieza do carro, com a fofura de suas poltronas. 



Na estrada, reparei que era mesmo um automóvel muito interessante. Além de tudo tinha um rádio! E que o rádio, a que me dei o direito de mexer, pegava estações de Belo Horizonte. Explorando aquelas preciosidades, notei que ao lado do rádio havia um botão prateado. Túlio apertou-o, esperou uns instantes e puxou: acendeu-se uma brasa. Porque pronto deduzi para que se prestava aquilo, vaidoso exclamei: acendedor de cigarros! 



Aqui surgiu a oportunidade para Túlio lembrar-se de inúmeras histórias. Ao contá-las para meu pai parecia que adoçava a boca. Na face redonda, calva e sem vergonha, seus grossos lábios tornavam-se mais salientes. 

– Em Minas, Al-Samir, há pencas de lindas moças - ainda que isto não seja uma preocupação sua, você sabe muito bem. Muitas me chamam às festas, aos bailes! Louras, morenas, brancas, mulatas, pretinhas... São as minhas prediletas. Todas. Quando receosas, sabe-se lá com que, não entram em automóveis. Nem mesmo para conversar. Preferem encostar de lado. Mas existem aquelas que, dentro ou fora do carro, de dia ou de noite, gostam mesmo é de namorar! Atraentes irresistíveis, muito curiosas. Às vezes, Al Samir, me pedem para assentar-se em meu colo! Falam-me que querem aprender a dirigir. Humm... Sei não. Só sei que é agradável.

- As que sempre querem passear...
- Por caminhos por vezes estreitos, anda-se à procura de lugares interessantes. Uma vista, uma cachoeira, uma gruta, um verdejante ou pitoresco lugar por perto. Num pic nic diferente... 

Com naturalidade soltava aquelas passagens sem se importar com a presença de uma criança entre os dois. Eu nada comentava. Permanecia atento. Às paisagens fora. Às conversas dentro. Meu pai também ficava calado. Quantas foram as curvas, serras e lombadas, tantas foram as histórias de namoros daquele viajante. Percebendo a fluidez e espontaneidade de tais relatos não duvidava de que eram histórias autênticas. Perguntas silenciosas eu tinha: cadê as lindas moças, que também eu tenho vontade de conhecer? Tento adivinhar que Túlio primeiro nos instale nos hotéis para depois tratar de namorar. Mas como tantas imaginam que um namoro transformar-se-á em noivado e depois em casamento? Vai ver que brincam que são namoradas deste sujeito simpático, mas feioso e queiram somente passeios, festas, farras... 

Pelas estradas, Túlio vai devagarinho guiando o seu Chevrolet. Parece sem pressa alguma. Suas histórias quebram a monotonia. Chegam a ser curiosas, engraçadas. Por vezes infelizes: 

– A Dulce... Exatamente doce.  E belíssima! Olhar inteligente e curioso, dentes perfeitos, boca maravilhosa, cintura fina, cabelos pretos e curtos, seios atrevidos. Uma atração doida! Em cada encontro parecia-me mais perfeita... Já não me importava com atraso da viagem, com compromissos e muito menos com a venda do que agora me pareciam apenas toscas mercadorias. Importava-me vê-la, adora-la, sentí-la. Palpável, sólida, real! Achando-a assim, dócil, disponível, inteiramente minha, queria, no sério, tê-la para sempre. E entendi o que é estar apaixonado. O que significa namorada... Em seguida fechou a cara, tampou a boca por um instante para continuar:

– Lembranças tristes... 
– Um dia, Dulce tão encantadora estava que me tonteei. Perturbado, imóvel, enternecido, apenas olhava para ela... Mesmo diante daquela coisinha a me olhar feliz, vívida, maravilhosa, senti uma nostalgia, um medo de perdê-la! Boquiaberto, sem palavras, apenas gaguejei. Quis fumar. – Emoções pedem-me um cigarro. Por desgraça peguei este acendedor entre os dedos. O cigarro na outra mão. Desastre: levei o acendedor aos lábios! O ruído de fritura, a dor, o susto, o cheiro de queimado e o embaraço paralisaram-me. Dulce apenas disse: “Oh, não! Não tem mais beijo..." 

Seguiram-se para ele dias e noites sem graça. Sem poder se alimentar direito, sem poder conversar ou rir, ou fumar e, muito pior, sem beijos, sem caricias, sem vida, despojado dos encantos que imaginara dispor, ficou deprimido. Relatou-nos que triste, escondido, acabrunhado, perdeu a Dulce. Comentou seco: acabou-se o que era doce. Depois, mudou de assunto. Com essa história é que reparei que Túlio naturalmente era, ou tornara-se por causa da queimadura, uma caricatura de lábios grandes e grossos.

Agora menos gabado em conversas, algo triste ou sério, mais célere, continuava o trabalho. Continuamos por uns dias e ao fim de cada jornada, o melhor hotel da cidade nos esperava. De manhã cedo rumávamos para outros pontos. E assim visitávamos dezenas de lojas.
Aos gerentes conhecidos, meu pai os apresentava ao Túlio. Eu, reunindo paciência oriental, assistia passivo a esses contatos. 

Por fim, seguimos para Belo Horizonte, e lá, à residência do Túlio. Como observador frio e crítico, registrei que o dono de um belo carro e protagonista de histórias formidáveis, morava num bairro muito periférico. Casa pequena e pobre. Na sala uma mesinha sem toalha. E alguns tamboretes.

Túlio surpreendeu-me: de primeiro chamando-me pelo nome, coisa rara em quem só fala de si, dos negócios, das amigas e depois e muito mais, porque, antes mesmo de quaisquer cumprimentos à sua mulher ou aos seus filhinhos, voltou-se para mim a demonstrar a absoluta confiança de que contaria com a discreta e silenciosa colaboração de um insuspeito garoto que ouviu quieto esta hipocrisia:

– Náder, essa é a  Odília de quem tanto lhe falei em nossa viagem.
Calma e naturalmente, apresentou-me assim à sua jovem, frágil, mal cuidada mulher, de quem jamais falara uma vírgula. Em seguida, aos filhos, tímidas crianças de uns dois, três e quatro anos que arrodeavam a mãe, cumprimentou com uma passada de mão em suas cabeças.
































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