sábado, 12 de novembro de 2011

Turbulência

                                       
                                            Crônica dedicada a quem gosta de avião e àqueles que detestam voar.

        Uma experiência de vôo em tempo ruim sucedeu-nos ao fim de uma manhã de dezembro. Dezembro do bom tempo de festas. Dezembro do mau tempo de festas outras que acontecem nos céus.
      Comandava o monomotor PT- RHF, Embraer 711-ST, Corisco Turbo. Saíramos de Brasília às 04:30 (07:30 Zulu). Em um vôo por instrumentos, íamos para Natal. Fazer essa viagem não foi sugestão, foi insistência,   teimosia mesmo de nossa pequena Stella que só imaginava praia, sol e mar, lá longe desta Brasília chuvosa. – Vamos pai, vamos pai, vamos! – E ficava a repetir-me incontáveis vezes. Cedi.   Tomada a decisão da viagem, esta história começou a ser traçada.
     Então, foi abrir umas cartas aeronáuticas, planejar rotas, conferir tempo, distâncias, quantidade de combustível, locais de reabastecimento e outros detalhes.
       O prognóstico das condições de tempo em rota e nos aeroportos de destino conheci na sala de tráfego, naquela madrugada, através das informações codificadas, conhecidas como METAR, TAF, SIGMET.  E  pela análise dos ventos e observação das fotos de satélite.  Toda assessoria ofereceu-me um   meteorologista militar. Paciente e solícito  como um  santo às 04:00 da manhã.
       A decolagem de Brasília, o vôo até Bom Jesus da Lapa foram tranquilos, agradáveis. De Bom Jesus a Petrolina não se via o solo. No nível 130 (altura de uns quatro km), sobre o topo de cerrada camada de nuvens, a vista lá embaixo era a daquele infindável tapete branco. Nessas horas sente-se paz, isolamento, solidão. Tive saudades da Terra. A mesma saudade que muitos marinheiros quem sabe, de vez em quando, sintam.
      Logo adiante, a vinte minutos de nossa escala, quebrar-se-iam todas aquelas saudades, monotonia, paz...  Um imenso paredão cinza chumbo erguia-se a perder de vista sobre a camada branca. Lindo. Ameaçador. Uma torre sem teto e sem fim que nascia no piso em que estávamos e que parecia dizer-nos: fim de linha! Fechava a passagem pelos lados e à frente, proa de Petrolina. Atrás, Bom Jesus, há uma hora e trinta. Desconhecia alternativas de pouso ao lado. Executaria o que dizem ser a mais sábia e respeitável manobra da aviação: voltar?  Refleti sobre o mau tempo. Quanto mais tarde, com certeza pior...  
     Vem nessas horas uma espécie de tempestade mental causada por conflitos. Refletir sobre uma situação perigosa para decidir rápido e sem erro gera ansiedade.   São pensamentos como os que nos perguntam: foi ou não foi uma imprudência decolar neste fim de dezembro com um tão evidente prognóstico de mau tempo, através da nossa longa rota? Vi-me diante de uma encruzilhada, sem tempo para pensar, sem tempo para racionalizar, sem tempo a perder. Encruzilhada que podia conduzir-nos para a vida ou para a morte. Se continuasse seria em busca do perigo? Seria um risco desnecessário? Haveria com grande probabilidade, severa turbulência. E talvez formação de gelo. Desses que já fizeram muitos aviões quebrarem-se. Muitos aviões cair!   Se voltasse restar-me-ia pouco combustível para contornar formações de nuvens pesadas, com todo risco de encontrar outros paredões. Sabemos que nessa época eles adoram o calor da tarde para formarem-se. Inoportunas reflexões...
   Uma espécie de turbulência senti dentro do peito. Nessas horas o coração me bate forte, descompassado. Com determinação, autocontrole, competência e coragem, consegui o que foi e o que será sempre a única condição a qualquer um para sobreviver numa emergência dessas. A coragem deve sobrepor-se ao o medo. Desta vez, um pouquinho só acima dele e sem pânico. Todos sabem que pânico mata. Decidido, penetrei nas nuvens negras. 
     O encontro de massas de ar quente e ar frio, a umidade, as correntes ascendentes e descendentes, a formação de nuvens pesadas são os fenômenos que causam turbulência, raios, gelo. O natural e bom que se transforma em mau quando se está no mar ou no ar.
     A esperança de chegar a Petrolina num vôo sereno dava ainda um clima de conforto à cabine do RHF. Perigosa ilusão imaginar que se possa nesses dezembros brasileiros, voar assim.  Ainda mais sem Radar, sem Stormscope, ou outros instrumentos que nos indicam um caminho pacífico entre nuvens rudes e desagradáveis. A diferença está entre voar sossegado em clima fresco e gostoso, tendo como referência uns pontos bem determinados no mapa da nossa rota, mostrados numa tela que informa clara e precisamente onde estão as áreas proibidas, ou um vôo cego, com incertezas e sobressaltos a cada momento.  Para quem gosta de adrenalina...
    Ao penetrar naquele insondável e assustador véu cinza escuro socorri-me, no sufoco da hora, aos ponteiros indicadores dos ADF (os Automatic Direction Finder, aparelhos de navegação). Quem sabe eles se prestariam agora como improvisados indicadores dos locais das trovoadas? Acontece que ponteiro de ADF sempre deflete na direção do raio, o que em tempo de chuva se nota costumeiramente, ao seguir um curso qualquer. De fixo e apontado para a estação sintonizada, o ponteiro salta para uma nova posição: a do muitas vezes distante Cumulus Nimbus (CB).   Consolei-me com o pensamento de que esses ponteiros dar-me-iam uma indicação aproximada da localização dos núcleos dos CB – local onde moram os maus tempos e continuei no rumo de Petrolina, procurando desviar o curso para o lado oposto ao dos saltos dos meus prestimosos ponteiros.
     Em vôos por instrumentos, a varredura visual – do horizonte artificial a cada instrumento e de cada instrumento novamente ao horizonte – passou a incluir os mostradores dos ADF.   Ao se cruzar turbulência forte, o piloto automático de vários aviões, e também o do Corisco, deve ser desligado e a tarefa de manter a aeronave em correta atitude de vôo fica toda com o comandante, que tem ded fazer a contínua, e por isto cansativa vigilância aos instrumentos de vôo: horizonte artificial, velocímetro, altímetro, indicador da razão de subidas e de descidas, bússola giroscópica, indicador de curva e derrapagens. A informação de cada instrumento determina as correções necessárias. Pilotar consiste nisto. Quando não há esse controle seguido das devidas correções, perde-se a atitude de vôo, atingem-se velocidades incompatíveis com o voar ou com o avião e ele pode cair ou quebrar-se no ar ou entrar numa espiral descendente. Qualquer desses incidentes, quase sempre mortais.
      Entramos em chuva pesada, tão forte que das asas só se viam as raízes. O resto era água contorcendo-se, espirrando num spray brilhante, assoprado pela hélice, sob aquele mar cinza. Tratava-se de um barco?  Mergulhado em tanta água, um submarino, talvez. Os raios, relâmpagos e trovões não se percebiam lá em cima, mas cá do lado e sobre nossas cabeças. Os abalos, as incontroláveis subidas e descidas cada vez mais fortes, a instabilidade, o avião querendo girar de ponta-cabeça, os solavancos, isto tudo ao mesmo tempo, é absolutamente enervante. Teme-se não conseguir controlar o aparelho. Apavora a possibilidade de aqueles esforços estruturais quebrarem a aeronave em algum ponto crítico, como asas ou sua delicada e vital cauda, constituída pelos estabilizadores vertical e horizontal, sem os quais o avião torna-se uma bola de giro e queda livre.
    A temperatura externa atingia 10 graus negativos. Formar-se-á gelo nas asas, gelo na hélice? Acontecendo isto as superfícies aerodinâmicas deixarão de ser asas, deixarão de ser hélice; o avião cai. Gelo lá fora. Suor no rosto, nas mãos, nos pés, nas costas, cá dentro. Frio na barriga? Pior. Frio na alma! 
     Entre navegar no mar ou nas nuvens e guiar um carro, a imensa e obvia diferença é que aqui não se pode encostar e esperar o mau tempo passar. Há de se navegar de qualquer jeito. Para frente, para trás, para cima ou para baixo, em curvas leves ou de grande inclinação, em vôo sereno ou turbulento há de se pilotar com segurança! E às nuvens negras que continuavam a abusar de nossa paciência, devíamos responder com serenidade e segurança. Fizeram-nos agora entrar num formidável elevador que, num instante, subiu aquele edifício de mil metros.  Porém se o avião for levado e levado para cima, faltar-nos-á de oxigênio, esvairá a nossa consciência!  Foi necessário uma  pancada na cabeça. Garantiu-me que alcançáramos o último andar. Caía agora o elevador. A brusca alternância de movimentos me fez bater no teto da cabine. Doeu. Sabe o que é pauleira em aviação? O que é sufoco, você sabe. Voar em mau tempo é como estar em combate, esperando pelo pior.
    Quanto aos meus ADF, pequenas e ilusórias segurança contra os Cumulus Nimbus, para que serviam, se justamente estávamos dentro deles? Ao nosso fiel motor Continental que rugia impassível e regular lá fora, acrescentáramos mais dois motores cá dentro. Os ponteiros dos ADF, indicadores fieis da posição das estações de rádio em terra, que durante décadas conduziram os aviões para o rumo certo e seguro dos aeroportos, instrumento de navegação criado muito antes de outros, como o VOR e GPS, giravam perdidos, como que à procura dos tais núcleos de CB que deviam estar por toda a parte. Ou então um demônio os fazia comicamente girar, por puro deboche a este pobre aviador.
     Bastou, porém que esses malditos ponteiros sossegassem, para que tempo fosse clareando. Para finalmente o avião entrar numa estrada sólida.
      Nem sei dizer quanto tempo durou a festa no céu. Ah, mas sei dizer sim do quanto de alívio, de alegria, redenção e glória, a gente sente! Com calma e um longo suspiro, reparei surpreso que, pela vitória alcançada não houve aplauso, nem sequer um UFA! Intrigante. Os passageiros pareceram-me indiferentes aos esforços, às apreensões, aos temores. A esse meu silencioso e decisivo combate. A irresponsável responsabilidade totalmente ignorada...
      Os filhos, três crianças, ficaram imóveis por todo tempo. A meia hipóxia daquelas alturas explica essa forma milagrosa de não se apavorar. Profundo, delicioso e abençoado sono. A quarta passageira assentada atrás com o mais novo no colo – a solidária, destemida e brava Rosalba, permaneceu como é de seu caráter, serena, calma, confiante. – Se tecendo crochê esteve,  tecendo crochê continuou.   

Um comentário:

  1. Quanta aflição dtr mata da pra sentir em suas palavras mas graças ao bom Deus foi superado este voo

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